domingo, 19 de outubro de 2008

Visões Secretas e Ipansotera

Marta Alvim por Euclides Sandoval ou Euclides Sandoval por Marta Alvim

A palavra escrita, como a poesia, alcança o nível da oralidade.

Aprender a fazer café depois dos sessenta, pode incluir maior dedicação à vida familiar. Aposentado, mas ainda dando aulas na Educação Artística da FESB, Bragança Paulista, Euclides Sandoval pode ser considerado um polígrafo. Precursor dos multimeios, como dizia Josette Monzani, da Universidade Federal de São Carlos, segundo a entrevistadora Marta Alvim, do jornal O Atibaiense, entrevistá-lo não é tarefa das mais fáceis: "Seu pensamento percorre extremos, o caos e a ordem, pontos opostos em permanente diálogo, na busca da equilibração". Equilibração, como conceito em que a estabilidade está na mobilidade. Marta continua: "Para ele não há verdade absoluta; fés são provisórias, vida é um constante questionamento". "Alma inquieta, tudo é dualidade que flui... Assim também suas realizações. Nada se completa. Única coisa certa: Ao completar-se, é a morte." Marta afirma que se sentiu lançada no instigante território da reflexão. Com a palavra a entrevistadora (a entrevista aconteceu antes da participação de Euclides no Botequim Literário, Companhia das Artes Atibaia, dia 21 de junho de 2006).

Quem é Euclides Sandoval?

Em primeiro lugar, um cara que está se encontrando cada vez mais. Ao mesmo tempo, grego e velho pagão. Vou aprendendo a lidar com expectativas. Vivo um momento especial.
Onde está hoje o militante das ações ambientais e culturais da década de 80?
Nunca deixei o cultural. O abrangente é a natureza; o agente (problema), a cultura. É preciso atacar aqui. Quanto às ações ambientais, lembro Regina Casé: "A ecologia começa quando cuidamos do próprio fígado".

Como as políticas públicas encaram essas questões?

Naquela época, quando fizemos o movimento ecológico (a palavra ecologia quase não era mencionada), nossa ação em Atibaia teve um caráter mais emocional. Algo emergencial, logo sentido pela maioria jovem. A Inter-Ação Ecológica - quase não se ouvia falar em ONGs - , por nós fundada, formalizou-se no final para acontecer o tombamento. Aquela coisa de registro em cartório, CGC, estatutos. Não havia centralização de poder. Hoje podemos ver que nossa postura anárquica gerou mais frutos do que imaginávamos. Surgiu uma liderança emergencial que tornou a questão ecológica disseminada entre os cidadãos. Caso contrário teríamos um bando... Bando é que precisa de chefe. Chefe, quem concentra poder, é bode expiatório. Quanto à cultura, hoje, Cultura com cê maiúsculo, posso citar dois grandes momentos em Atibaia, na direção de Élsie Costa e Vitor Carvalho. O grande mérito é de uma prefeitura, segundo mandato de Beto Trícoli, agora com essa multiplicação de espaços e núcleos de arte e expressão.

O que é arte?

Artístico é tudo aquilo que você considera arte. Num nível mais perceptivo, você vai ter suas preferências. Modelo na cabeça e querer impô-lo é institucionalizar a própria escolha. Já há muito chato por aí. A pior arte pode ser melhor que a melhor crítica feita sobre determinada obra. O mais importante é o processo do artista, sua história. O percurso, suas idas e vindas, e, principalmente o fato dele se ver artista.
Pensando em estética, Deleuze, Kant, Hegel ou outro?
O outro para mim é Merleau-Ponty. Acredito numa dialética sem síntese, ao contrário de Hegel. Você caminha por aproximações sucessivas (Heráclito). E não se toma banho duas vezes no mesmo rio...
Explique melhor isso de "dialética sem síntese".
O filho não é uma síntese do pai e da mãe... É um outro homem ou uma outra mulher.

Qual o ponto em que o fotógrafo, o diretor e ator de teatro, o escritor e o artista plástico se encontram?

Em tudo, principalmente no visual. E todos fazem ficção. Meus últimos quadros têm a ver com Magritte. Coloco na ficção, realidade alterada, elementos da própria realidade: ninho, chave, planta, terra. "Isto não é..." Não. "Isto é..."

Todas aquelas personas... Acadêmicos ou marginais?

À margem do sistema... Cavalo com a cabeça erguida, mas sem tirar os pés da lama. Lama entendida como o constituído, certos costumes, normas a obedecer, concessões sem o quê não se vive em sociedade. Com a consciência de que em cada passo estamos vivendo e morrendo. Vida é auto-realização; morte, concessão.

Genialidade, o que é isso?

A genialidade está sempre situada. Gênio e louco, a mesma pessoa. Depende do momento histórico (espaço/tempo).


O cajado é um elemento conceitual... Faz parte de algum ritual?

Ritual religioso ou profano, tudo está em sincronia, a gente é que costuma dar nome às coisas. Símbolos carregam grande energia, não podem ser nomeados, nem definidos. Tive formação religiosa, mas tudo está, ou deveria estar, embutido, naturalmente. As ações são ou não são. Ações ou estados, não se define o amor. Ou se ama ou não se ama. A experiência do cajado surgiu a partir da necessidade de apoio e proteção durante as minhas caminhadas por estradas de terra, com a Maria. Talvez a "arma e apoio" estejam ligadas à ancestralidade, coisa do inconsciente coletivo. Os objetos colocados nas pontas dos cajados são elementos heteróclitos pegos ao acaso. Depois de trinta cajados feitos - hoje, na Mostra de Atibaia, expus sessenta e dois -, encontrei referências, em Jung e Juan Eduardo Cirlot, por incrível que pareça, a posteriori, dando nome aos meus cajados.

Você se preocupa com o fato de o experimentalismo ficar restrito à compreensão de um público reduzido?

Como diz Niemeyer, em entrevista recente à Caros Amigos, a obra de arte tem que criar emoção e surpresa. Podemos contribuir para que a atitude do fruidor de arte se enriqueça, oferecendo-lhe "biscoito fino". Como a indústria cultural trabalha mais com o representativo e a "baixa informação", diminui o espectro sensível. As pessoas se fecham no previsível, no que se explica, no representativo e na coisa reprodutiva. A atrofia da sensibilidade repercute nas relações interpessoais e na compreensão da vida e do mundo. O sucesso das novelas (baixa informação), das bandas pauleiras, do pagode repetitivo (hoje, felizmente restituindo à nossa música popular, o lugar que ocupava), tudo o que é mais digestivo (a médio e longo prazo indigesto), são exemplo do que estou falando. Precisamos voltar a dar as mãos, num clima menos veloz e altissonante.

Qual a melhor relação entre arte e sociedade?

A arte atua no nível das significações. O mais importante é a relação entre a coisa em si e o conceito que temos dela, ou seja o signo. Relação entre significante e significado. Por mais arbitrária que seja essa relação, ela é que importa. A obra, ao surpreender, nos tira do terreno dos condicionamentos. Deixamos de salivar só ao ouvir a chamada para o almoço. Quem mais nos condiciona é a educação informal ou formal. Ela nos veste com um colete apertado. Certo que chega a gerar destrezas necessárias para nos expressarmos e conduzirmos em sociedade. A arte, por sua vez, transcende, liberta.

Como você vê as novas tecnologias, o papel da arte e da comunicação eletrônica?

Como recursos a serem administrados pelo artista. Suporte e conteúdo, ou forma e conteúdo se se preferir, de resto são a mesma coisa. Não se compete com a memória infinita da máquina. Agora, nessa dualidade é preciso que se distinga o abrangente (paradigma) do agente (ação concreta). Ter em mente que o movimento aqui é o de uma sinusóide, tipo yin e yang. Um prevalece, porém, contém o outro. O que é abrangente, no momento seguinte pode passar a ser agente. No agente, sempre o problema. Veja que não se trata de meio termo. Na vida, tempos que optar. O homem, como abrangente, não deve se submeter à máquina (o mesmo que recurso), agente. No entanto, você, num instante de desorientação pode eleger o recurso, a máquina, o meio, como principal valor para encontrar o caminho... Não é isso que ocorre tantas vezes na lida com o computador?

Estaria a arte mais relacionada com a ociosidade, soltura de alma e espírito, vôo imaginário, ou o artista tem mesmo que ralar, ser racional em busca de elementos e meios para a criação?

A auto-realização está na ociosidade.

João Cabral ou Vinicius de Moraes?

Estou mais pra Vinicius, embora admire João Cabral de Melo Neto.

Qual a convivência possível entre teatro e literatura?

É o tipo de convivência que não deveria ser difícil. O teatro resgata a oralidade da palavra escrita. São irmãos com a distinção que sempre existe entre gêmeos.

Há alguns anos você iniciou uma espécie de diário, livros de grande formato, contendo textos e elementos visuais sobre sua vida. Fale sobre isso.

São meus cadernos de campanha. Há seis anos dei início de forma sistemática a escritos diários (não se trata da chatice de um diário), o que eu chamo de "Cadernos do Beiral" (Beiral das Pedras é onde moro). Quase um dia-a-dia voltado para o conceitual. Chuto o passado próximo ou remoto como uma bola, para o futuro, sem tirar os pés do presente. Textos autocompreensivos. Vou me descobrindo entre signos. Além de palavras manuscritas, textos digitados, recortes de jornal, fotos, desenhos, colagens. Estou no décimo segundo caderno, umas três mil páginas. Isso faz parte do meu processo existencial de sobrevivência e, claro, de auto-realização.

Na entrevista publicada em O Atibaiense, 17 de junho de 2006, Marta Alvim diz na abertura: "Escrever sobre Euclides Sandoval, artista multifacetado, não é tarefa das mais fáceis. Seu pensamento percorre dois extremos, o caos e a ordem, pontos opostos que estabelecem permanente diálogo em busca de equilibração. Não há verdade absoluta. Ao contrário, vive-se em constante questionamento. Nesse sentido, extensão de uma alma inquieta, é na relação com a dualidade que flui a sua obra. Inevitavelmente ela nos lança ao território da reflexão. Formado em Filosofia pela USP (Universidade de São Paulo), especialista em Arte, Ensino e Produção, pela PUC - Campinas, Sandoval é membro da Association Internationale des Arts Plastiques - Maison de l' UNESCO. Jornalista, professor universitário da área de artes, desde 1987, orientador de teatro, fundou o Grupo Ipansotera (2004), e suas obras integram importantes acervos, entre os quais o do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC). Seria impossível, neste espaço, registrar todas as suas participações e premiações em salões e exposições de artes visuais, desde 1964. Mas não poderíamos deixar de mencionar o trabalho desenvolvido junto ao Núcleo de Arte Contemporânea Olho Latino, e o fato de estar presente, como artista convidado, no XV Encontro de Artes Plásticas de Atibaia, Centro de Convenções e Eventos, onde apresenta a instalação "Cajados", cerca de 60 peças."

Um comentário:

hercules disse...

É, não deve ser fácil entrevistar o Sandoval... Mas o resultado ficou muito legal!